Ouve a Cidade, faz o download da App.
Pedro Gonçalves, o homem de poucas palavras e muitos sons
Luís Mileu/Cortesia LiveCom

Pedro Gonçalves, o homem de poucas palavras e muitos sons

O multi-instrumentista dos Dead Combo foi um viajante pelo mundo dentro do Bairro Alto.

Antes de ter entrado na sua maior expedição sonora de sempre, os Dead Combo, Pedro Gonçalves era já uma figura muito respeitada dentro da música portuguesa, como retaguarda e base de vários artistas, incluindo Sérgio Godinho. Desde sempre conhecido como contrabaixista, Pedro Gonçalves não coube no jazz (onde foi formado como músico, na escola do Hot Clube) e alargou as suas competências de produtor, arranjador e instrumentista a outras áreas, como o caso do fado, de que é exemplo o seu trabalho recente com Aldina Duarte, num raio extenso e diverso que inclui nomes de outras paragens como Rita Reshoes, Mazgani, entre tantos outros.   

 
Foi a meias com Tó Trips (vindo dos indie-rockers Lulu Blind) que Pedro Gonçalves formou em 2002 a dupla dos Dead Combo, com que desenharia uma nova paisagem sonora para a música portuguesa no século XXI. O Bairro Alto foi o berço do par. Foi numa ida àquele combinado de ruelas e travessas que os dois (que ainda mal se conheciam) lançaram a ideia de trabalharem juntos, a partir de umas ideias de "malhas" que Tó Trips tinha na cabeça. Foi também em pleno coração do Bairro Alto que encontraram uma casa laboratorial para crescerem e tocarem ao vivo repetidamente: a Galeria Zé dos Bois.   


 
Com o alento do dedilhado brusco de Tó Trips na guitarra elétrica, Pedro Gonçalves (ora em pé junto ao matulão contrabaixo ou agilizando-se numa melódica, ora sentado com uma das suas guitarras) criou um companheirismo boémio, com avistamentos da guitarra portuguesa de Carlos Paredes e evocações transatlânticas de um som malandro de uma América de estrada mais cinéfila. Enfiaram-se por outros sons, como o tango ou as mornas, como quem se enfia numa das catacumbas do Bairro Alto, num beco com muitas saídas.   
 
Tal como Tó Trips, Pedro Gonçalves era económico nas palavras. Na música dos Dead Combo, foram ainda mais longe no desdém ao palavreado, em instrumentais cuja imensa paleta de sons substituía o léxico gramatical. Se falavam pouco, diziam muito - e diziam-nos muito. Pedro Gonçalves avolumava tanto quanto aveludava. Ao jeito de homem de mil e instrumentos, juntou uma sensibilidade estética superior (com o seu mano musical Tó), a partir de coisas tão simples como dois instrumentos, como se para viajar pelo planeta bastasse uma canoa. E para eles, bastou. 
 

 
 
Se a voz dos Dead Combo eram os instrumentos, as poucas palavras estavam guardadas para os títulos peculiares, que denotavam uma vontade suprema de viajar a partir de cá dentro. 'Tejo Walking', 'Canja Voodoo', 'Lusitânia Playboys', 'Cachupa Man' ou 'As Quica As You Can' eram alguns dos títulos das músicas. Era também aqui que estava a marca identitária da dupla, a que juntava uma imagem forte, que não eram só os fatos e o chapéu de cartola com que Tó Trips escondia a sua testa. O palco dos Dead Combo parecia também uma casa-museu de objetos. 
 
Se convocavam o mundo a partir do embrionário Bairro Alto, foi o mundo que os chamou para fora do Bairro Alto. O chef e viajante gastronómico norte-americano Anthony Bourdain teve a intuição para fazer da música dos Dead Combo a banda sonora de todo o seu episódio sobre Lisboa em "No Reservations". Entusiasmado por aquela espécie de blues-rock à portuguesa, foi ter com eles para uma das conversas em que petiscavam e bebiam umas imperiais. Os Dead Combo, nessa fase do álbum "Lisboa Mulata", já tocavam nos teatros e salas mais ilustres de Lisboa e Porto. Em "No Reservations", vemo-los a tocar no Tivoli. Passaram por outros espaços da capital como o São Luiz ou mesmo o Coliseu dos Recreios, e no Porto, em salas como o Rivoli. Os Dead Combo foram também para os recintos ao ar livre, integraram bem o circuito ao vivo dos festivais, como o NOS Alive, o Vodafone Paredes de Coura ou o FMM Sines. 
 

 
 
A dupla foi crescendo em termos de recursos humanos. E Pedro Gonçalves e Tó Trips foram deixando de estar sós em palco, alargando a formação ao vivo (baterista incluído) e colaborando com uma orquestra (como a Royal Orquestra das Caveiras). Juntaram-se-lhes ainda lendas americanas como o guitarrista Marc Ribot ou o vocalista Mark Lanegan (ex-Screaming Trees). 
 
A morte precoce de Pedro Gonçalves precipitou o fim já anunciado dos Dead Combo. 51 anos de vida é tempo a menos de vida, mas o suficiente para um legado indesmentível. Com uma discografia robusta de uma dezena de álbuns e com um historial de concertos nos mais diferentes contextos, os Dead Combo fazem parte de uma lista notável de nomes - Madredeus, Banda do Casaco, Sétima Legião, Anamar, António Variações, A Naifa, Diabo na Cruz, B Fachada e tantos outros - em que congeminaram uma identidade muito própria, tendo como base as suas próprias origens e uma hibridez cosmopolita, sempre com uma enorme vontade de abraçar o mundo. Pedro Gonçalves teve esse sonho e cumpriu-o exemplarmente.  
 

 
 
 

Gonçalo Palma

Mais Notícias