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Já podemos ouvir "A Madrugada Que Eu Esperava", o álbum
DR Foto Promocional

Já podemos ouvir "A Madrugada Que Eu Esperava", o álbum

Entrevista a Carolina Deslandes e a Bárbara Tinoco sobre o álbum (e respetivo musical) que celebra a Revolução dos Cravos.

No dia em que Portugal celebra os 50 anos do 25 de Abril, Carolina Deslandes e Bárbara Tinoco editam "A Madrugada Que Eu Esperava". É o disco que materializa o musical que foi batizado com o mesmo nome e que também é uma criação da dupla de cantoras e compositoras que agora arriscam no papel de atrizes. 

"Olívia e Francisco conhecem-se e apaixonam-se num grupo de teatro amador que está a produzir uma versão musical de 'Romeu e Julieta'. Olívia tem ideais políticos fortes que se refletem na sua oposição ativa à ditadura. Francisco é um rapaz introvertido, sonha ser ator de comédia - acredita que o riso é a mais eficaz arma de subversão - e vai aos ensaios às escondidas, porque o pai não aprova as suas aspirações artísticas. Será que podemos conhecer a pessoa certa no momento errado? O amor move mesmo montanhas, ou da paixão ardente só fica a cinza?", lê-se na descrição do espetáculo.


Até ao dia 28 de abril, a peça, cujo texto é assinado pelo escritor Hugo Gonçalves, vai estar em cena no Teatro Maria Matos, em Lisboa. A 30 e 31 de maio, o espetáculo vai ser apresentado no Coliseu do Porto. Diogo Branco, Dinarte Branco, Jorge Mourato, João Maria Pinto, Maria Henrique e Mariana Lencastre são os restantes atores do elenco. A encenação ficou nas mãos de Ricardo da Rocha. 

"A Madrugada Que Eu Esperava" - o disco - "junta as vozes da revolução e do presente". Jorge Palma, Sérgio Godinho, Paulo de Carvalho, Luísa Sobral, Filipe Melo, Salvador Sobral, Rita Rocha, Tatanka, Tiago Nogueira, Buba Espinho e Diogo Branco unem-se às duas cantoras neste longa-duração que está, a partir de hoje, disponível nas várias plataformas digitais. As canções foram escritas, a quatro mãos, por Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes.

Ao todo, são 17 faixas que juntam os 13 temas do espetáculo a quatro canções que ficaram de fora por motivos de força maior. O álbum inclui ainda os instrumentais gravados em estúdio, tal como foram apresentados em cena pelos músicos Feodor Bivol (guitarra), Marco Pombinho (piano), Miguel Casais (bateria), Rui Pedro Pity (baixo) e Sandra Martins (violoncelo), com a contribuição das guitarras de Diogo Clemente e Pedro Mourato.


Como surgiu a ideia de criarem um musical?

BT: Foi quando ficámos amigas. Quisemos logo fazer um musical juntas. É daquelas coisas que se conversa na cozinha. Na altura, achámos que a coisa ia ficar por aí, mas, há cerca de dois anos, começámos a ponderar seriamente em levar a ideia para a frente. Foi quando começámos a pensar no nome de um escritor para escrever a peça e chegámos ao Hugo [Gonçalves]. Como ele estava a fazer pesquisas sobre o 25 de Abril, deu-nos a ideia de fazermos um musical sobre o tema. Nós adorámos a proposta. Dois anos depois, cá estamos. Estamos em cena no Teatro Maria Matos, em Lisboa, há dois meses e em maio vamos para o Coliseu do Porto. 


Como é que foi recriar esta parte da história portuguesa nas tábuas do teatro?

CD: Foi bastante informativo. Como não somos atrizes fizemos um workshop intensivo para ficarmos com algumas luzes. Só depois é que começámos a desconstruir o texto. Lemos, partimos o texto aos bocadinhos e quase "fizemos um arroz" de texto. Foi muito importante perceber o que é que estava a acontecer, social e politicamente, na época. Foi importante perceber qual era a sensação que as pessoas tinham, quais eram as liberdades pelas quais as ansiavam. Perceber o que é que hoje nos choca por sabermos que na altura era proibido fazer. Foi um processo de muita aprendizagem. Não só por estarmos a fazer uma coisa que nunca tínhamos feito profissionalmente, mas também por ser uma temática que faz parte da história do nosso país. Achamos sempre que sabemos, porque se fala muito no assunto, mas acabamos por saber do assunto de uma forma muito superficial. Quando aprofundamos e mergulhamos efetivamente no que aconteceu conseguimos ter muito mais noção da dimensão da Revolução e de tudo aquilo que a Revolução trouxe à vida das pessoas. Principalmente à vida das mulheres. Antes do 25 de Abril as mulheres eram inexistentes.  

O que proibições é que vos impressionaram mais?
CD: Há várias partes do texto que falam sobre isso. Por exemplo, a dada altura, o Francisco [Diogo Branco] diz: "tu dizes que queres fazer uma peça de protesto porque as mulheres em Portugal não podem abrir uma empresa, nem podem sair do país sem a autorização do pai ou do marido". E a personagem Olívia [Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes] responde: "nem podem ser juízas ou diplomatas e se forem enfermeiras ou professoras, precisam de pedir uma autorização ao Estado para se casarem". É um exemplo. O marido podia optar por não dar autorização para a mulher ir trabalhar. Ela tinha de tratar da casa e se decidisse ir trabalhar sem autorização, o marido podia pedir para que fosse despedida. E o patrão era obrigado a despedi-la. O que mais me chocou foi saber que se o marido matasse a mulher, por tê-la apanhado a cometer adultério, teria apenas de cumprir um exílio de seis meses. Após cumprir o exílio, o marido podia voltar à vida normal. Isto significa que era quase legítimo um homem matar uma mulher que fosse adúltera. 


E como é que estamos em matéria de memória? Acham que as gerações mais novas têm noção de como era a sociedade portuguesa antes do 25 de Abril? 

BT: Acho que nesse sentido a nossa peça até fala bastante para as gerações mais novas. Mais do que lembrar o que foi, a peça faz com que os jovens sintam realmente o que aconteceu. Uma coisa é ler sobre o que se passou num livro de História, outra é sentir. A arte dá-nos a possibilidade de sentir as coisas que não vivemos. Eu gosto de pensar que pode haver um jovem que, depois de ter ido ver a nossa peça, tenha começado a perceber a importância da política e a importância de votar. Se calhar, esse jovem vai ter um interesse diferente sobre estas questões porque, nem que seja mais tarde, vai pensar que não vai querer viver num país onde não haja liberdade. Ou que não vai querer votar num partido sem estar devidamente informado. A nossa peça não fala sobre isso mas, na verdade, fala sobre isso, ou seja, explica o contexto social em que vivemos...

CD: E fala sobre a força do conjunto. A Revolução dos Cravos aconteceu porque muitas pessoas quiseram saber. Para muitas pessoas, foi o propósito das suas vidas. 

E já que estás a falar nas pessoas que quiseram saber, o vosso álbum tem o contributo do Sérgio Godinho, do Jorge Palma e do Paulo de Carvalho. São nomes indissociáveis do 25 de Abril. Como é que reuniram este elenco e como é que se sentem por terem estas vozes históricas no disco?
À pergunta "como é que foi possível?", a Bárbara responde com três letras: PDF. Ela organizou tudo num PDF e começou a falar com os vários managers. Foi a Bárbara quem tratou de tudo. Foi inacreditável e incansável para que tudo isto acontecesse. Quanto à escolha dos convidados, depois de já termos as canções, começámos a pensar em possibilidades. Pensámos em quem seria incrível ter neste disco. Claro que pensámos nestes nomes mas achámos sempre que íamos levar tampa. E não levámos tampa nenhuma. Toda a gente foi incansável, querida e disponível. E todos ficaram felizes com o convite. 

E o que é que a experiência de trabalhar com estes nomes vos ensinou?
É de uma enorme generosidade terem dito que sim. Nem sei explicar o que é que aconteceu. Estávamos à espera que os nossos amigos aceitassem e, ainda assim, podiam ter recusado. Mas não estávamos à espera que estes três nomes aceitassem. No fundo, éramos apenas duas miúdas que estavam a fazer um musical sobre uma coisa que eles viveram. Mas aceitaram. Não só aceitaram como confiaram cegamente [no projeto]. Quiseram estar ao serviço do projeto e ao serviço das canções que fizemos. Isso também é o 25 de Abril. É a força do conjunto. 

CD: É uma data que é de todos. Temos de ter essa consciência. É de quem a viveu e de quem a tem de manter. Também é responsabilidade nossa. E acho que este disco mostra isso mesmo. O 25 de Abril tem de ser mantido, ideologicamente, todos os dias e todos os anos. Temos de lutar para mantê-lo. É de quem veio antes, de quem esteve na Revolução e de quem veio depois. Todos nós temos essa responsabilidade. É como se fosse um fio que não tem fim. À medida que o tempo vai passando, toda a gente vai agarrando uma ponta do fio. 

Bárbara, dás voz e compuseste a canção 'A Madrugada Que Eu Esperava', que foi o primeiro single a sair. Como é que foi o processo de composição deste tema?
Nós sabíamos que esta canção tinha de existir e começou a surgir de uma forma muito natural. Quis contar o que aconteceu no dia da Revolução. É uma canção sobre os anseios das pessoas, sobre o que as deixava descontentes. Quis mostrar, de uma forma poética, porque é que as pessoas queriam o 25 de Abril e do que é que estavam fartas. Quis relatar o dia que começou com uma revolução militar, à qual o povo acabou por se juntar. Ao mesmo tempo, é sobre a esperança e a alegria daquele dia. Algumas pessoas sentiram medo, mas, quando falo com pessoas que viveram aquele dia, oiço essencialmente histórias de alegria. Pessoas que resolveram casar naquele dia, por exemplo. Nós nem conseguimos imaginar como é que aquele dia foi vivido. Queria que a canção tivesse também esse lado de esperança. A melodia do refrão dá-me esperança. Foi o que tentei captar com a canção. 


E o single 'Dois Dedos de Testa' chegou com a voz da Carolina...

Sim, acabei por gravar essa canção sozinha, mas o segundo verso é da autoria da Bárbara. A 'Dois Dedos de Testa' fala, de forma irónica e sarcástica, do papel que a mulher tinha na altura. Do papel que a mulher tinha e do papel que ainda tem, sobretudo na questão do que é suposto uma mulher ser enquanto wife material. A canção é sobre uma mulher que recorre ao sarcasmo para falar sobre o que é ser uma mulher boa casar e para ser mãe. Só na parte do refrão é que essa mulher acaba por dizer que quer viver a sua liberdade e que quer estar fora desse estereótipo. É quando diz que quer ser a dona da festa. Quer chamar a atenção e romper com o estigma. Nesse sentido é uma canção muito disruptiva. Acho que muitas mulheres sentiram isso com o 25 de Abril. Puderam, finalmente, existir em toda a sua plenitude. Começaram a poder ir a festas, a beber um copo, a rir e a falar mais alto. Passaram a ter opinião. Apesar de não parecer, é uma canção de celebração.


Qual é o maior inimigo da liberdade?
CD: É quando nos fecham "numa caixa de cartão". É impedirem-nos de ver o sol, é não nos deixarem ver o céu. Não literalmente, mas a nível ideológico. Sentimos o inimigo a partir do momento em que nos sentimos coibidos de algo que esteja dentro da nossa existência digna e da nossa liberdade. Estamos a ser convencidos de que para as coisas funcionarem tem de haver uma série de regras e imposições. E isso sente-se cada vez mais. Estamos a andar para trás. Eu não acredito nisso. Acredito que as pessoas têm de se sentir cada vez mais acompanhadas. Têm de se sentir incluídas e têm de ser mais consideradas. Acho que as pessoas só se aliam aos inimigos da liberdade quando estão desesperadas. Parece que eles trazem soluções rápidas e muito apelativas, mas, na verdade, é apenas o populismo a funcionar. 

BT: Para mim, são essas pessoas. São as pessoas que falam dos problemas mas não falam das soluções. Ou mostram soluções com base no ódio e não no amor. Isso não muda o mundo. Só traz mais problemas e não soluções.  

Se vocês tivessem na casa dos 20 anos no dia da Revolução dos Cravos, como é que acham que seria o vosso dia? 
BT: Essa tem sido uma pergunta recorrente nas entrevistas, o que nos meteu a pensar bastante no assunto. Acho que a Carolina já teria sido presa para aí umas três vezes. (risos)

CD: Que exagero. Mas a verdade é que há uma cena na peça que recria uma invasão à PIDE e o meu avô foi uma das pessoas que, de facto, invadiu as instalações da PIDE. Acho que acabamos por ser um resultado da nossa educação. A minha família saiu à rua, levantou o braço e fez-se ouvir. Sendo eu neta dos avós e filha dos meus pais era isso que faria. Acredito que o meu 25 de Abril seria de celebração mas também de contestação e de luta. Seria um dia de murro na mesa. Nem faria sentido ser de outra maneira. 

BT: Eu não. Não sei se teria filhos, se teria medo. Há tantos fatores.


O que é que cabe na vossa definição da palavra "liberdade"?

CD: Para nós, que somos mulheres, a liberdade começa quando percebemos que não temos de pedir autorização nem desculpa. Há coisas que só nós é que ainda temos de pedir autorização para fazer. Acho que ainda nos sentimos constantemente responsáveis quando algo corre mal. Até nas relações amorosas. Achamos que, aconteça o que acontecer, se pedirmos desculpa, as coisas acabam por ficar resolvidas. Temos essa sina. Sentimo-nos responsáveis pelo que o outro sente ou pela forma como sente. Achamos sempre que devíamos ter cuidado mais do outro, que devíamos ter previsto a situação ou que devíamos ter feito as coisas de forma diferente. É exaustivo e não é verdade. Vivemos tão preocupadas com este tipo de coisas que acabamos por ficar em segundo plano. Temos de pensar no que realmente queremos. Temos de conhecer os nossos limites, saber quais são os nossos sonhos. Liberdade é isso. É não termos de pedir autorização. É não termos de estar constantemente a pedir desculpa. É não termos de ter validação para sentir, para ser e para querer. Não vamos saber o que é sermos livres até nos esquecermos do que nos disseram que é suposto sermos. Só daqui a muitos anos. 

Sentem que a vossa geração de artistas está a virar-se mais para as questões políticas e sociais?
CD: O resultado das últimas eleições veio pôr o foco na urgência de falar de certas coisas. Nós achamos que conhecemos o mundo através dos nossos telefones ou dos nossos círculos de amigos. Somos a média das pessoas que nos rodeiam. Achamos que o fascismo ou o facto de alguém achar que a mulher deve voltar a ser dona de casa é uma loucura. Não é. É o país onde vivemos. Ainda é um país ainda ultraconservador e ultracatólico. As pessoas é que vivem na fantasia de que o país onde vivem é o círculo de amigos que têm. E não é. O resultado das eleições mostrou-nos que isso existe. E existe com muita força. São cada vez mais. Não são mais que as pessoas que, na minha opinião, estão do lado certo da História, mas são mais convictos. E eles vão continuar a votar, vão continuar a falar e não vão deixar a bola cair ao chão. Os exemplos recentes do Brasil e dos Estados Unidos começaram a preocupar-nos, agora é importante que nos cheguemos à frente. No nosso caso, mais do que estar a publicar coisas na internet, é a cantar que conseguimos explicar o que sentimos e o que defendemos. 

BT: Creio que passa por cada um de nós. É meter o foco em pequenas lutas. Se cada um de nós quiser mudar uma coisa e se trabalhar ativamente para mudar essa mesma coisa, acho que conseguimos a mudança. Seja através de uma canção, de um livro ou de algo mais prático. É um a um. Cada um de nós a fazer a sua parte, a lutar pelo que acredita. Nós fizemos a nossa parte com este musical. Relembrámos o que é viver sem liberdade. Foi a nossa contribuição.  

Redação

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