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Fat White Family no planeta dos cacos
Spela Cedilnik (cortesia Popstock)

Fat White Family no planeta dos cacos

Entrevista ao vocalista Lias Kaci Saoudi sobre o álbum novo, "Forgiveness Is Yours", que sai nesta sexta-feira.

Lias Saoudi pensa em profundidade como um filósofo, vê-se como futuro escritor mas a sua profissão confunde-se com o seu modo de vida: o rock & roll e tudo o resto, como os incontornáveis sexo e rock & roll.

Os Fat White Family vivem na vertigem das montanhas russas, mas estão-se a ver num mundo ainda mais oscilante e até mesmo a descarrilar. O novo álbum "Forgiveness Is Yours" é uma trip apocalíptica, com o lema "Let’s enjoy it while we can", em festa, com o ócio em contagem decrescente. Lias Saoudi vê-se "na espreguiçadeira de um Titanic". O barco está a ir ao fundo, Lias faz o pessimista aviso à tripulação e aos passageiros, mas o rock & roll tem que continuar.

"Forgiveness Is Yours" é um conjunto de crónicas do presente que pressente “no future”. As canções são como crónicas da queda do dominó gigante que se chama mundo. Nessa derrocada, também uma peça dos Fat White Family caiu entretanto, o guitarrista principal Saul Adamczewski. Mas, mais uma vez, o rock & roll tem que continuar.

Encontrámos Lias Saoudi num manhã de março, num hotel central de Lisboa. 

Este álbum pode ser visto como uma grande festa de despedida disto tudo?
Definitivamente, escrevi o meu fim de tudo isto com um sentido de fatalidade e de término. Se a cortina se está a fechar, tem que soar como tal. É definitivamente a coisa mais árdua que tive que fazer, a tarefa mais indutora de ansiedade e tara a que me propus. Depois de cada álbum, digo sempre as mesmas porcarias: “nunca vou mais fazer isto”. Mas assim que atuo em palco, sinto aquela resposta orgânica. É anti-natural estar enfiado numa sala estilo bunker, sem janelas, a abanar com batidas, e fazê-lo durante anos. Deus não nos criou assim. Eu sou um performer, não sou um homem de estúdio. O meu habitat é o palco. Assim que volto a esse equilíbrio, e mem mostro, recebo alguma apreciação. E depois há uma pequena festa, e depois vou dormir, e depois repito tudo. Assim que recupero o equilíbrio, volto a ponderar a ideia de ter que fazer tudo outra vez. Se assim for, “quero que me espanquem até à morte numa rua”, é o que eu diria agora. 

Entrevista aos Fat White Family


Há um paralelo entre o espírito de festa - “vamos gozar isto enquanto podemos” - e uma visão pessimista, não há?

Acho que sim, todos estamos doloramente cientes de que a nossa parte da história está em declínio, e não é um declínio dramático ou romântico, mas uma espécie de desaparecimento lento da consciência da realidade tal como a conhecemos, despojada da sua mística. Tudo está quantificado, digitalizado, sistematizado, instrumentalizado. Podemos convencermo-nos que estamos a segurar a vela para as próximas gerações, mas o som de fundo é uma espécie de risada negra cósmica. 

Isso é ser pessimista?
São indiferenciáveis. Mais astuto for o teu pessimismo, mais útil serás para o circulo imediato. É música nas esperguiçadeiras de um Titanic, ou algo assim.

O que pretendes dizer na música ‘John Lennon’?
Bem, estive na casa da Yoko Ono a trabalhar numa gravação som o Sean [Lennon, o filho mais novo de John Lennon]. Eu nunca tinha conhecido a Yoko. Eu estava a tomar muita cetamina naquela época e a Yoko apareceu de surpresa. Entrou na sala e o Sean começou a fazer-lhe uma massagem de forma muito carinhosa. Eu estava bem pedrado e pensei: “uau, isto é muito, muito estranho”, com o coração bastante pulsante da estranheza. “Isto não pode ficar mais estranho”. E ficou ainda mais estranho quando parou para me dizer: “fazes lembrar-me o meu marido. Ele também era cantor”. E eu pensei, “ah, a sério, isso é interessante. Sabe em que banda estava?” Eu estava sob os efeitos alucinogénios da cetamina, com um grande andamento. 
Eu acho que alguém como a Yoko é como uma espécie de personagem bíblica. Ela não é um ser humano real, mas de repente estava ali um ser humano extremamente real, a falar sobre o John. A primeira coisa que ela me disse foi sobre o John, o que é muito doloroso e trágico. Imagina que perdes alguém como o John Lennon. É a dimensão dessa experiência como se fosse um ecrã gigante, em que podemos também saborear e sentir. 
Comecei a pensei se ficasse possuído pelo John e o que é que o John diria à Yoko. Porque ele pode ser um sacana. Todo o mundo adora o John, mas ele também tinha alguma maldade. E eu apenas imaginava-o a implorá-la para ir ter com ele para o seu submundo, a tentar convencê-la a atravessar o grande portão, porque também ele estava cansado de lidar com ele próprio lá em baixo ou lá em cima. Era isso que eu estava a tentar cantar. “Vem até mim, estou aqui há mais de 40 anos”, a berrar ao estilo do John Lennon. “Estou aqui há uma carrada de anos. Sabes bem que me mandaram embora daquela maneira tão imbecil, há mais de 40 anos”. 

Tendo em conta a saída do Saul Adamczewski, a gravação deste álbum foi a vossa experiência mais difícil de sempre?
Claramente. A nível interpessoal, foi um inferno. Na verdade, isso teria que acontecer com os Fat White, após tantos anos de abusos de drogas e de problemas de saúde mental. Mas havia sempre tanto amor à volta, que nem sabia como desistir. Caio naquele lugar comum de pensar que faz parte da profissão destruir-me todo. 
Penso que ele [Saul Adamczewski] não se queria maçar mais. Ele sempre teve dificuldade em trabalhar comigo. Não sei do que se tratava, talvez fosse da minha falta de destreza musical.

Houve sempre uma fricção entre vocês os dois?
Sim. Há esta coisa britânica de fazermos tudo em pares, os americanos não fazem tanto isto. Nós, britânicos, temos esta mania de fazer isto em duplas e depois bulhamos. 

A amizade terminou entre vocês?
Deixámo-nos de falar.

O título, "Forgiveness Is Yours", é uma mensagem para o Saul?
Não. Não me lembro de quando veio a frase. É uma frase que vem ensombrando a banda durante anos. Forgiveness Is Yours parece algo cómico, mas imagino-a mais como um reconhecimento. Sou antes eu a perdoar-me por estar a navegar neste barco há tanto tempo.

O livro biográfico sobre os Fat White Family, "Ten Thousand Apologies", inspiraria um bom filme, um bom drama?
Bem, a parte mais dramática aconteceu depois da publicação do livro. Penso que mudei muito ao ter escrito o livro. Senti-me mais acomodado com a minha alma. Ganhei algum respeito por mim próprio, foi uma experiência terapêutica. Posso transformar a minha experiência vivida numa história, em que posso eliminar o material usado na produção dessas situações. Posso ordenar a realidade e transformá-la num jogo que se joga com a linguagem. Acho que isso talvez seja mais interessante agora do que a música. Sinto-me mais interessado em literatura do que em música.

Vê-se mais como um escritor no futuro?
Eu gostaria de me ver nessa posição, mas não sei se serei totalmente aceite por essa casta, porque estou muito atrasado e tenho consciência disso. É como o Johnny Depp a tocar guitarra. É constrangedor, certo? Ou como os 30 Odd Foot of Grunts, de Russell Crowe [banda rock australiana]. É o que acontece quando alguém vai de um meio para outro utilizando a plataforma que tem. Isso é um verdadeiro crime contra a arte, eu acho. Eu não quero que seja esse o caso.

De vez em quando usa simbolos argelinos. Enverga um chapéu tradicional do país nos vossos concertos. No vídeo do “Bullet of Dignity”, identificamos a bandeira argelina num par de cuecas, num ambiente muito sexualizado. Tem recebido reações de argelinos?
Já tinhamos feito uma recriação do teledisco do Bittersweet Symphony dos Verve no nosso videoclipe de Today You Become Man na Argélia, numa cidade montanhosa. Tive que largar uns quantos dinares [a moeda argelina] para arranjar um carro de alguém, para que eu pudesse subir para cima dele. Sempre que vou para a Argélia, fico um bocado ansioso, porque a homossexualidade é ilegal e o vídeo tem uma estética homoerótica explícita. Espero que aqueles tipos não se interessem por aquilo porque, sabes, está online. Oxalá não mergulhem demasiado no vídeo, com exageradas pesquisas e tudo o mais, sobretudo a malta fundamentalista islâmica, porque as coisas podem tornar-se complicadas. A minha cidade é habitada por uns quantos terroristas reabilitados que vieram da Guerra Civil Argelina. É difícil violar mais o haram do que eu. Mas até agora não tive outra coisa por lá se não boa vontade. A família é absolutalmente vital lá. 

O que é que era mais estranho para um miúdo britânico como o Lias, sempre que ia à Argélia durante a infância e a adolescência?
Lembro-me de ter lá ido quando os meus pais estavam quase a divorciar-se. Nessa altura, estava para me a mudar para a Irlanda do Norte com a minha mãe. O meu pai pegou em nós - em mim e nos meus irmãos - e viajámos da Escócia até lá [a Argélia]. Ficamos por lá durante um a dois meses, mas parecia uma eternidade. Lembro-me de me sentir frustrado por não conseguir encontrar um [restaurante] McDonald's. Só comíamos aquela maravilhosa gastronomia berbére. Sempre que lá regresso, posso tirar proveito da fantástica comida e de toda a cultura. Mas na altura em que era miúdo, vivia-se numa era pré-internet, sem canais de televisão e sem McDonald's, incluindo em Alger [a capital argelina]. Ouviam-se as orações, era o nosso único entretenimento. É uma sensação estranha, porque sou de lá, mas, ao mesmo tempo, sinto-me um alienígena. Sinto-me ainda mais alienígena do que quando vou a um local completamente abstrato do mundo, porque nesse local abstrato, a expectativa é que eu seja mesmo tratado como um estranho que ninguém conhece. Portanto, é ainda mais estranho ir à Argélia e ter todos aqueles miúdos obcecados à minha volta a darem-me beijinhos porque são meus primos. É bizarro. 

Entrevista aos Fat White Family
Gonçalo Palma

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