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Filipe Sambado: "Estou a narrar as coisas como se estivesse em casa"
Diogo Vasconcelos & Xipipa 2

Filipe Sambado: "Estou a narrar as coisas como se estivesse em casa"

Conversámos com o músico português a propósito do novo álbum que assina. "Revezo" chega hoje às lojas e às plataformas digitais. 'Jóia da Rotina' foi o primeiro single. 'Gerbera Amarela do Sul' é o tema que Filipe Sambado vai levar ao Festival da Canção.

 

"Revezo" é o terceiro disco de Filipe Sambado e é lançado hoje com o selo da Valentim de Carvalho. Depois da estreia discográfica com "Vida Salgada" (2016) e do menos solitário "Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo" (2018), o músico português diz que agora é um "narrador de momentos" que deveriam ter elasticidade suficiente para durar mais do que a existência empírica que os circunscreve

Se os momentos que narra têm um fim mais precoce do que a elástica vontade, Filipe Sambado cristaliza-os em canções. O "manifestante de desejos" presta homenagem ao brilho da rotina simples e preciosa, convidando quem o ouve para a celebração do maravilhoso mundo do ócio. E atenção, "ócio não é estar quieto, é pensar". Haja "amor para dividir", reflexão e o "gato no colchão". 

Neste terceiro disco, o músico entrelaça sonoridades e tempos. Como diz a descrição do álbum que nos chegou às mãos em boa hora, são "canções capazes de atingir uma alegria pop contagiante". Ao ouvirmos "Revezo", "mergulhamos os ouvidos numa folk floral e contemplativa (mas sem contemplações!), mantendo o músculo da música de intervenção e a rudeza da música popular portuguesa, com apontamentos de folclore, em arranjos de luxúria conceptual. Mesmo nos momentos de maior tensão, adivinha-se um sorriso cúmplice e malandro na voz doce e sedutora de Filipe Sambado". É muito isto e talvez mais. A apresentação está feita, vamos à conversa.


Quando eras miúdo costumavas fazer mixtapes

Sim, fazia. Eu sou filho de pais divorciados e quando estava na casa do pai aproveitava para fazer as minhas coletâneas com os discos dele. Na altura da pré-internet, não tinha acesso a muita coisa, a muitos discos. Em casa do meu pai, punha-me a ouvir os CDs e passava as músicas para as minhas cassetes. Só tinha um leitor de cassetes. (risos)

Sentias que, na forma de consumir música, as fronteiras entre géneros musicais estavam mais erguidas ou já sentias que os rótulos muito vincados estavam a ficar obsoletos?

Acho que não tinha muita noção. Percebia o que era rock, o que era pop, mais hip hop ou Rn'B - que eram os géneros que ouvia mais. Depois é que começaram a existir mais rótulos intermédios. O que fazia muito, quando estava com o meu pai, era gravar as canções que estivessem a dar na rádio. Gravava sempre a voz do radialista no final de cada música. (risos) Também houve a fase do [canal] Sol Música e da MTV em que gravava muitos videoclipes. Gravava os vídeos como se os canais não estivessem sempre a repeti-los. Eram sempre os mesmos, mas, ainda assim, ia buscar o VHS que tinha mais à mão e gravava.

Entretanto, a forma de consumir a música está muito diferente…

Claro. Está muito mais acessível. É mais democrático, o que é mais fixe.

Que vantagens é que reconheces na tecnologia ao serviço da música?

Acima de tudo, é mais democrático e financeiramente mais acessível. São as vantagens que considero mais importantes mas também reconheço alguns contrapontos mais complicados. Em vez do gosto dos radialistas temos o gosto de influencers e as sugestões das playlists agora são feitas por algoritmos, o que faz com que sejam menos interessantes. Em grosso modo, acho que é bom tu poderes aceder a muita música a um preço baixo ou de forma gratuita, dependendo da plataforma que usas. 

Pode haver uma maior dispersão no consumo de música, mas focamos sempre o ouvido no que sentimos que é importante...

Sim. Os que ouvem música com gosto de ouvir música continuam a ser tantos ou tão poucos como antes. Não é assim tão diferente. Acho até que há muito mais gente a ouvir mais música. O cuidado de ouvir é igual ao que era, tem a ver com o interesse que tens em ouvir. 

Agora, o teu novo disco. "Revezo" é editado depois do álbum anterior - "Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo" - ter figurado em várias listas dos melhores discos do ano. Sentes algum tipo de pressão com esse "título"?

Acho que até se torna mais fácil, na medida em que me sinto mais confortável. Não estou a contar com um galardão para reconhecer aquilo que faço, mas já conto com a abertura e recetividade dos meios ou da imprensa. Quando estás a começar, tens de furar um pouco mais para conseguires chegar a esse patamar. Quando já tens a atenção das pessoas e desses meios, acaba por ser vantajoso. Estou mais preocupado em ter a oportunidade de levar o disco ao meu público e a outros públicos do que vê-lo cotado como o disco do ano. Acabo por não sentir pressão, é algo mais relaxado.

"Revezo" é uma referência bucólica que está ligada à ideia de alternância, mudança. Porque é que escolheste este título para o álbum?

Para mim, o conceito agrícola de "revezo" é imageticamente utópico e o conceito de utopia costuma ser muito vertical. Vai atrás de um ponto, de um eixo ao fundo. Esta ideia de revezo é quase a mesma coisa, só que eu vejo essa ideia num plano horizontal que está sempre em rotação. É como se tivesse uma setinha a apontar para um lado e outra seta a apontar para o outro. (...) Tens de deixar alguma coisa em descanso para poderes estar ocupado com outra coisa, ou seja, para que a outra coisa vá crescendo e tu possas aproveitar. Nunca vais ter a oportunidade de usufruir de tudo ao mesmo tempo, mas podes arranjar maneira de ir usufruindo pontualmente de cada coisa.
 

 

O que é que contemplas nessa perspetiva horizontal?

O revezo que imagino na minha cabeça é composto por vários campos, com vários tipos de atividade. É o trabalho, a casa, os amigos e a música. São coisas separadas. 

Também há uma ideia de recriação neste disco. Recrias algumas sonoridades do passado musical português... 

Sim. Essas sonoridades já estavam sugeridas no meu último disco. Agora, além de terem uma incidência maior, há uma maior consciencialização dessa incidência. Para este disco, houve uma investigação mais cuidada, sobretudo do lado progressivo e dos ritmos e danças portuguesas. Tentei aproveitá-los e inclui-los numa linguagem que fosse minha.

Além do folclore, da música tradicional portuguesa, também há influências da cantiga de intervenção.


Não fui muito a fundo na procura de coisas muito tradicionais. Já fui "beber" aos intermediários, aos compositores que fizeram isso por mim. Fui buscar a característica estética e a sonoridade da música de intervenção, de protesto, de resistência ou de luta a esses artistas que já tinham feito a pesquisa da música tradicional. Inspirei-me na forma como esses compositores aproveitaram ou até sabotaram e adulteraram esses conceitos musicais. Como não estamos nos anos setenta, tentei fazer isso à minha maneira, no presente.

Sei que andavas a ouvir Fausto, por exemplo.


Sim, especialmente [o álbum] "Por Este Rio Acima". Os outros [discos] vou ouvindo mais pontualmente, mas o "Por Este Rio Acima" acompanha-me sempre. 

O que ouves quando estás a trabalhar num disco influencia-te muito? É uma relação direta? 


Sim, acontece-me muito. Por vezes, como costumo ouvir coisas diferentes durante a criação do disco, a minha orientação fica um pouco "descolada" entre partes. Neste disco, sobretudo na fase dos arranjos, decidi criar uma linha mais comum a tudo. Foi nessa altura que fiquei mais fechado nos discos do Zeca [Afonso] ou no "Por Este Rio Acima" do Fausto. Foi também nesta fase que a Rosalía entrou...

Antes da Rosalía, e ainda no universo da cantiga de intervenção, manusear a palavra, quando pode ter impacto social, é uma responsabilidade para ti ou nem por isso?

Manusear a palavra já é natural para mim. É algo que tenho vindo a tentar melhorar de disco para disco. Houve um período em que chegava a contar as sílabas para escrever as letras. Tinha esse cuidado. Depois, o processo tornou-se mais imediato. Tenho sempre intenção na forma como digo a palavra, como cada sílaba poderá caber em cada nota. O folclore ajuda bastante nesse sentido. A ideia de subir numa frase e descer na outra, para dar-lhe um sentido mais conclusivo, ou vice-versa. Também tenho cuidado com as acentuações métricas das palavras. É importante para ajudar quem ouve a perceber melhor. Aliás, tive essa luta durante muito tempo. Sentia que as vozes estavam baixas no disco e isso levava-me a não ter muita confiança a cantar. De repente, comecei a perceber que não tem a ver com o volume nem com a dicção. É a forma como a letra é escrita. Quanto à responsabilidade, não penso muito nisso porque tenho um lado muito consciente (até incomodativo) sobre o que vou dizer. Tenho cuidado com o que vou dizer quando sei que posso tocar em pontos frágeis. Além do que é dito, também é maneira como as coisas são ditas. Tenho o cuidado de não perpetuar ideias com as quais não concordo. Quando canto sobre amor tento não utilizar o artigo ou pronome femininos. Prefiro deixar as coisas mais abertas. Tenho cuidado na forma como falo de minorias ou das pessoas no geral. Tento ser o mais inclusivo possível na linguagem. Procuro não afunilar muito as coisas. Ao habituar-me a estes cuidados, sei que estou a criar uma linguagem minha.

És uma pessoa que tem alguns sobressaltos em relação ao que te rodeia? Como é que a música poderá ter um papel pacificador nessa inquietação?

A música pode ser o que cada um quiser, da forma como quiser. Na minha música, procuro ter um discurso consciente. Tento não me perder demasiado em coisas que não me interessam, o que acaba por ser uma tarefa fácil. Acabo sempre por falar sobre aquilo que me tira o sono.

Este disco também é uma ode ao ócio muito interessante...


Sim. Há uma coisa muito engraçada em relação à origem da palavra "ócio". Tem uma ligação com a palavra "negócio" como oposição. O ócio não é só estar quieto, também é pensar. Já o negócio é não pensar. É simplesmente fazer uma transação. Este disco está muito ligado ao ócio, sim. É algo predominante. 

Há pouco falaste na Rosalía que também vai buscar música tradicional (no caso dela o flamenco) para fundi-la depois com sons contemporâneos. "Revezo" acaba por ser um disco espaçoso no que toca a sonoridades...

E mais lânguido, sim.  É também assumidamente mais lento. Acho que a primeira música ['Tusa Mole'] é uma boa canção para introduzir o disco. É algo entre o cante [alentejano] e uma coisa mais onírica, espiritual, espacial. Nesse tema faço uma autêntica revolução no sofá. Faço tudo no sofá. Assumir isso é importante. No disco tento criar alguma proximidade musical com a descrição imagética que faço [nas letras]. Talvez seja por isso que o disco é mais relaxado. Estou a narrar as coisas como se estivesse em casa. É importante sentir conforto. É um disco para ser ouvido em casa ou em viagem. Mesmo que o significado seja maior, talvez não seja um disco para ser ouvido na velocidade de Lisboa. É para ser ouvido noutras circunstâncias. Talvez nos momentos em que estamos sós, a fazer as pazes com uma série de coisas ou a assumir erros.

O single de apresentação chama-se 'Jóia da Rotina'. Que rotina é essa e o que é que brilha nessa rotina?

Essa música é um eixo entre a casa onde vivo com a minha namorada, a Cecília, e a casa da minha irmã que mora à distância de duas ruas. Na letra falo em quarteirão, mas, na verdade, é mais do que isso, só que "quarteirão" rimava bem. Às vezes, temos de pôr a ciência e a poesia à frente da verdade. (risos) A minha irmã tinha engravidado há pouco tempo, é por isso que digo "deixa a barriga crescer". A letra é sobre a vontade que tinha de voltar a casa quando ia no metro para o trabalho. No meio da confusão do metro-  e sabendo que ia estar 12 horas no trabalho - a única coisa que queria era voltar para junto da Cecília, do meu gato e da minha irmã.     

 


O vídeo que ilustra o single foi realizado pelo Miguel Afonso. Tem um conceito visual muito forte. Como é que foi a criação do teledisco?

Foi quase tudo feito pelo Miguel com quem tinha feito um filme há pouco tempo, entrei como ator. Decidi convidá-lo para fazer o videoclipe. Disse-lhe apenas queria que fosse um vídeo muito bonito e que despertasse a curiosidade aos olhos. Quando dás uma tarefa destas a uma pessoa em quem confias, sabes que essa pessoa vai ter de arranjar referências, ligações e substância. É raro encontrares pessoas com inputs criativos que não tenham essa preocupação, podem é não ter as mesmas referências que tu. Foi muito fácil chegar ao resultado final. Tenho um passado em dramaturgia, o que faz com que seja mais crítico. Costumo fazer uma avaliação posterior às coisas e tento sempre criar ainda mais ramificações. Quando o Miguel apareceu com a primeira ideia, comecei logo a arranjar justificações para o que ele estava a mostrar-me, mesmo que não fossem coincidentes com as dele. Essa dinâmica originou ideias novas de ambas as partes. Foi um processo simples. Assentou na ideia de trazer elementos tradicionais, mas adulterá-los um pouco. É a tal coisa de criarmos novas tradições e afastarmo-nos de outras. Perceber o que interessa e o que não interessa. Hoje em dia, somos obrigados a ter noções de família diferentes, por exemplo. Temos de alugar casa com pessoas que nem sempre conhecemos. Temos de ter noção que a qualquer momento podemos depender de pessoas que não nos são assim tão próximas. É importante criar boas relações e estarmos próximos uns dos outros. Contarmos uns com os outros é bem mais importante do que o que se pensa

Uma das faixas do disco - "Gerbera Amarela do Sul" - é uma das músicas concorrentes ao Festival da Canção 2020. 

Já tinha o disco fechado quando recebi o convite para o Festival da Canção, mas achámos que seria melhor incluir o tema no álbum para não ser demasiado confuso. Foi por uma questão de comunicação. Acabei por pegar na canção que tinha feito de propósito para o festival e rearranjei-a para que ficasse mais coerente com o disco. A música estava um pouco mais afastada do álbum, embora também tivesse o lado que resultou da pesquisa do folclore. 

 



Estás muito ligado à Maternidade - uma associação cultural de agenciamento artístico. Vê-se que há cumplicidade criativa entre os vários artistas desta "casa". Isso também ajuda a delinear caminhos criativos, certo?


Sim. É a tal necessidade de criar novas famílias e novas tradições. (risos) Acabas por viver de perto a experiência e a música das outras pessoas. Estas minibolhas ou comunidades que vamos desenvolvendo, e que depois se cruzam entre elas, permite-nos estar próximos. Resulta depois naquilo a que apelidamos de "cena musical". 


Confira datas e os locais dos próximos concertos de Filipe Sambado:

24 de janeiro - FNAC Chiado (entrada livre, 18h30)
31 de janeiro - Leiria, Texas Bar
1 de fevereiro - Águeda, Centro de Artes de Águeda 
7 de fevereiro - Torres Vedras, Bang Venue 
28 de fevereiro - Vila Nova de Santo André

Informação atualizada no dia 29 de janeiro:


No dia 14 de fevereiro, o músico atua no espaço Maus Hábitos - Espaço de Intervenção Cultural, no Porto. Inicialmente, o concerto estava marcado para o Hard Club, também no Porto, mas foi cancelado pelo músico. A decisão de Filipe Sambado prende-se com o facto da sala portuense ter acolhido um encontro do partido Chega, de André Ventura, no passado dia 24 de janeiro. 

Pode ler o comunicado do cancelamento em baixo:

 



 



 
Silvia Mendes

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